terça-feira, 20 de agosto de 2013

MEU AVÔ, ADOLPHO CÂNDIDO NOGUEIRA

                                                           

                                       MEU AVÔ

                                              I

Nos tempos de meus avós, o casamento se emoldurava numa sociedade tradicional. A educação, a religião, a lei, asseguravam a autoridade do pai sobre a filha, do marido sobre a esposa. A busca de um marido era uma questão obsedante. Casar, mesmo que mal, era uma questão fundamental. Mal as moçoilas deitavam busto, já se lhes incutia a convicção necessária do casamento. O problema era casar. "O amor vinha depois" com o hábito da vida em comum.

Não se preparavam as filhas para viver, mas sim, para serem boas esposas, saberem sofrer, servir, obedecer. O homem era um ente superior, dono do lar, cabeça do casal. A ele se permitiam amantes, filhos naturais. Mas ai daquele que não lavasse a sua honra ultrajada com sangue. Marido traído devia significar mulher morta!

Ficar  para tia, tia solteirona, era uma posição subalterna, melancólica, que deixava entrever um futuro plúmbeo, com lar de empréstimo, pagando com prodigalidade de serviços e dedicações o pão e teto alheios. Naquele tempo, só a vida em família era confortável, toda gente se casava.


O casamento de meus avós antes da proclamação da República tem uma história. Corriam muitos rumores sobre o que seria esta tal República. A República era o anticristo, era a ordem de satanás. Ousava separar a Igreja do Estado. E entre outras disposições odiosas, instituiria o casamento civil, roubando da Igreja a exclusividade de celebrar matrimônios. Os pais já não teriam autoridade sobre suas filhas e filhos, eles poderiam se casar com quem quisessem no novo regime. 

Naquele tempo, as  filhas viviam enclausuradas até o momento de entregá-las ao marido, que então zelaria pela sua honra. Uma honra frágil que poderia ser perdida num piscar de olhos. E uma vez perdida não podia mais ser recuperada.

Como poderiam os filhos escolher com quem se casar? Se pudessem escolher, certamente escolheriam a satisfação dos instintos, a imoralidade, a safadeza. 

Meu bisavô conhecia mil histórias de garotas trancafiadas em seus quartos, e que tinham sido desonradas... Ele conhecia bem as prostitutas que frequentava regularmente. Meninas de família, que por um cochilo tinham perdido a virgindade, expulsas de casa...

Por isso, antes que viesse a maldita República, meu bisavô tratou de casar suas filhas.


Adolpho Cândido Nogueira, meu avô, era mineiro de Águas Virtuosas de Lambary. Ela era mineira de Alfenas, ou talvez de Guaxupé. Casaram-se em fins de 1889, ele com 24 anos, ela com 19. 

De meu avô não restou nenhuma foto, mas eu o imagino com facilidade. Alto, magro, de tez clara. Olhos castanho-esverdeados, orelhas grandes, de abano, num rosto fino. Bigode, como se usava, cabelos castanhos. Sempre de chapéu, montado num cavalo fogoso, botas e esporas, olhar incandescente, dedo em riste. Enérgico, de voz forte.


Maria José Ribeiro, minha avó, vinha de uma família numerosa, com 16 irmãos. Era orgulhosa de ter frequentado a escola e ter aprendido as primeiras letras. Tinha a sua Bíblia e o seu Missal que lia quando toda a casa já dormia. Contava histórias do mestre bravo, que não hesitava usar a palmatória quando não sabia a lição. Desta avó, restaram fotos de sua velhice. Viúva, sempre de preto, olhar compassivo, rosário na mão. Roupas escuras, humilde. Mas não nos iludamos com este primeiro flash. Atrás do figurino que lhe impunham, havia uma mulher forte, que criou 9 filhos com determinação. Nada de fragilidade, de submissão... Viúva aos 39 anos, cuidou de seus filhos, e sobreviveu até os 100 anos...

Meus avós iniciam sua vida de casados em São José do Rio Pardo. Ignoro o que meu avô fazia no começo de sua vida, mas não consigo imaginá-lo como um colono qualquer. Ô raça! Muito orgulho de si, grande auto-estima. Nascido para mandar. Mas... se se é pobre, sem recursos... como fica este gosto de mandar?

A 22 de agosto de 1890 nasceu-lhes uma menina, a quem chamam Evarista, certamente em homenagem à irmã de meu avô

A 14 de maio de 1892 nascia meu pai, José, às três horas da tarde, em domicílio, como reza a certidão de nascimento. Minhas irmãs garantem que ele comemorava o natalício a 23 de fevereiro, e que nasceu no Sítio Novo, uma fazenda do município de São José do Rio Pardo. O registro diz, na caligrafia arrevesada do escrivão, que nasceu ali na rua da estação, na casa de meu bisavô. Certamente o registro não registra a verdade. Mentia-se para evitar as penalidades de um Estado fajuto. Eram leis que não "colavam". A criança já estava falando, e registrava-se como nascida "ontem", para evitar multas. Foram testemunhas do nascimento, meu tio-avô João Gualberto de Melo (João Mariano) e Joaquim Ignácio de Melo (marido da tia Evarista). Para madrinha de batizado, na igreja, minha avó convidou sua irmã Olímpia e o marido Sebastião.

Mas meu avô é um homem irriquieto, que não se consola com uma vida humilde. Não conseguindo ver perspectivas de um futuro melhor em São José do Rio Pardo, resolve seguir com o irmão Gualberto  e o pai para Vila Nova de Rezende. Colocou os pertences no lombo de animais e rumou para o sul de Minas. O Zeca, com 4 anos incompletos ia num jacá pendurado no cavalo, brigando com a irmã Evarista de 5 anos. Ora queria cavalgar com o pai, ora queria ficar com o avô. Quinze léguas, dois dias de viagem. Era julho, os ipês vestidos de amarelo, a erva de são joão subindo pelas cercas de arame farpado. Muito pó. Terra vermelha. Serras após serras, o verde azulando na distância...

O povoado era conhecido como Santa Rita, que era o orago da capelinha ali erigida. Clima de montanha, aí foi o lugar em que meu pai passou sua primeira infância. Meus avós acompanharam a família. Os filhos foram chegando ritmicamente: Castor (27.11.1894), Maria das Dores (1895), Carmem (16.12.1896), João (22.08.1900). Poucos registros temos da época. Alguém contou que no batizado do meu tio Castor, o cavalo em que minha avó cavalgava "passarinhou", e ela caiu, quebrando o braço. Ela vinha sentada no silhão, que tinha apenas um estribo, no qual a amazona introduzia o pé, ficando o outro suspenso do mesmo lado. Era como se ela se sentasse, meio de lado, suspenso do mesmo lado. O padrinho do menino foi o Vicente Cafundó, de quem ainda falaremos muito.

Meu avô Adolpho e seu irmão Gualberto abriram um armazém de secos e molhados, uma portinha onde vendiam o querozene, o fósforo, enxadas e facões, bacalhau e cachaça. Aí se reuniam os desocupados para beber um trago, trocar desaforos e vantagens. Surgiam  discussões, politicagens. Cuspinhavam no chão de terra, fumando o cigarrinho de palha. Discutiam as notícias recentes, causos. Às vezes as vozes se alteravam. Ali se encontravam capangas dos coronéis locais. Uma tarde a coisa esquentou no boteco, um sururu danado. Meu avô, metido a valente,  se meteu na confusão de rebenque em punho. Os ofendidos foram buscar reforços. Percebendo o perigo, meu avô pôs a família no lombo de cavalos e fugiu na surdina da noite. Sua propriedade foi incendiada, mas ele já ia longe.  Meu pai teria seus sete ou oito anos, e foi levado na cabeça do arreio, pelas estradas poeirentas, enfeitadas por magníficos ipês. Amarelos... Após longa jornada, foram dar com os costados de novo em São José do Rio Pardo, onde foram acolhidos por parentes. E aí se estabeleceram de vez.

Foi trabalhar na fazenda São José, que pertencia a Felice Maria Calvitti, italiano, construtor, artíficie da primeira Matriz de São José do Rio Pardo, do cemitério da cidade, e das igrejas de Casa Branca e Mococa. O patrão era italiano, e como imigrante, não merecia grande consideração por parte de meu avô. Trabalhar para um "carcamano", ele, brasileiro, branco... Sentia-se humilhado. Nesta fazenda nasceu minha tia Carmem, em 16.12.1898. 

Em 1910 um colono, amigo do meu pai, matou Calvitte. Meu avô já tinha falecido (logo eu conto). O colono foi preso em Mococa, e meu pai ia visitá-lo na cadeia, penalizado com suas condições precárias. Doente, com tosse, dormindo no chão frio, com bronquite, aguardando o julgamento... Meu pai se lembrava da opressão do Calvitte, de como explorara meu avô, e relatava as condições do preso para a família... Todos se condoíam, e torciam pelo assassino...

Mas não aceleremos a história... Vamos dar uma olhada na sociedade daqueles tempos...

Naquele tempo, no Brasil, as fortunas provinham apenas do trabalho agrícola. O amanho da terra, o apascentamento do gado eram as únicas  profissões compatíveis com a dignidade humana. E isso porque o trabalho que não o da direção agrícola, até 1889 cabia aos escravos executar. Olhava-se com desprezo para os ofícios "mecânicos", as profissões exercidas com as mãos. Um "homem bom" não tinha sangue judeu, mouro ou negro, não tinha sangue "infecto", não se ocupava de trabalho manual. Era a síndrome do "sinhozinho da Casa Grande", ainda tão comum em nossos dias.

Mas no início do século XX o braço escravo foi substituído pelo imigrante europeu. Daí o pouco apreço social em que era tido o estrangeiro. Era considerado um ser inferior, executando um trabalho que outrora coubera aos negros. Pior, não trabalhavam de graça, como os escravos!

O filho do fazendeiro ia estudar para doutor no Rio, na Europa. O fazendeiro era brindado com o título de major, capitão, coronel, dependendo da sua fortuna. Se tivesse cinquenta mil pés de café, era Capitão. Com cem mil pés, era chamado de Major. Com um cavanhaque, Senhor Major. Mais rico, uma barriga farta, careca, chefe do diretório local, recebia o posto de Coronel.

No início do século XX vamos encontrar meu avô com administrador da fazenda da Serra, do Coronel Soares de Camargo, grande proprietário de terras, homem rico e influente, plantador de café. Não sei se o Coronel Soares era barrigudo, careca... Mas que era poderoso, era... A história da cidade registra seu nascimento em 1856, e morte, em 1946. Era também proprietário das fazendas Santo Antônio, Prata e Santa Rita. Foi quem montou a primeiro hidrelétrica em São José do Rio Pardo. Os dois primeiros carros a motor da cidade foram trazidos por ele. Era um dos caciques locais.

E no final do século XIX, começo do século XX, a grande riqueza de São José do Rio Pardo era o café.

As fileiras verdes desciam encostas, atapetavam planícies, galgavam montanhas, espraiando-se na imensidão do horizonte. As matas iam tombando. Árvores imensas, cernes de madeira de lei, juncavam os campos inaproveitadas. Tudo girava em torno do café, a estrada de ferro chegando com suas levas de imigrantes.

No tempo dos escravos, o símbolo do fazendeiro era o rabo-de-tatu. O fiscal representava o fazendeiro, cuidando do trabalho dos imigrantes, e se sentiam no direito de usar o tal rabo-de-tatu. Os imigrantes recém-chegados não podiam satisfazer as exigências daquele trabalho rude, da formação de lavouras e desbravamento de zonas inóspitas. Recusavam-se a representar o papel de escravos, atraindo a ira dos fiscais. Viam-se, muitas vezes, forçados a cumprir ordens, para evitar serem castigados. Sentiam-se enganados quando se deparavam com uma realidade muito diferente daquela que lhes fora prometida. Quantos deles, impossibilitados de qualquer reação, não sentiram na pele o vergão dos chicotes dos antigos feitores, rebatizados com o título de administradores, quando não do próprio Coronel de falar grosso? 

Meu avô era um destes administradores, que tentava submeter os colonos com pulso forte, na fazenda da Serra. Era estimado pelo Coronel e odiado pelos colonos. A fazenda da Serra cultivava o café, e os imigrantes italianos estavam no lugar dos antigos escravos. Inseguros, em terra estranha, eram submetidos a humilhações e violências. Às vezes um colono se aproximava, inadvertidamente (ou acintosamente!), de chapéu na cabeça, e recebia um tapa no pé do ouvido. Se tinha juízo, apanhava o chapéu e pedia desculpas. O fiscal queria demonstrações de subserviência e respeito. Nada mais era que um substituto do antigo feitor de escravos.

Quando minha avó via o dedo em riste do marido, sua voz tronitroante, os olhos frios de cólera, ficava horrorizada com a macheza do marido, e temia pela sua sorte: "Valhei-me, Nossa Senhora das Dores!" Católica fervorosa, não perdia uma missa, uma procissão, um terço, pedindo a proteção divina. E trabalhava como uma moura, com a filharada pequena ao pé da saia.

Quem ajudava minha avó nos serviços da casa era a Dadá (Teodora), a velha escrava que viera da senzala de meu bisavô materno, o velho Hipólito. Parteira, benzedeira, ama de leite das crianças, pito na boca - e como gostava de uma pinguinha! 

Pertencera à senzala de Antônio Silvério da Silva Musa, proprietário da fazenda Água Fria de Santa Clara. De uma feita, seu patrão se desfizera de boa parte dos escravos, e entre eles, sua mãe. Ela era menina, e não entendia bem o que estava acontecendo. A última lembrança que tinha da mãe foi na fila de escravos saindo da fazenda. Dadá correu para um barranco para se despedir. A mãe, em farrapos, seguia na fila de negros vendidos, com uma cana assada na mão, que chupava, indiferente ao seu destino. Ao ver a filha lacrimejante, hesitou um momento quebrou a cana no joelho e ofereceu-lhe a metade. "Não chora, não!" E a fila seguiu, tocada pelo capataz.  E por fim foi comprada por meu bisavô, e se tornou a ama de meu pai e de seus irmãos.

Meu pai, em pequeno, ajudava nos pequenos serviços. Com onze anos, por aí, ia levar comida para os camaradas na roça. Ao voltar para casa com os caldeirões vazios e sujos, em vez de lavá-los, deixava que os cachorros lambessem os restos. Depois se gabava do feito... Já despontava sua veia sarcástica, o gozo de troçar daqueles que estavam socialmente abaixo.

Desde pequeno, o Zeca era apaixonado pelos cavalos e gostava de montar. Levou vários tombos, quebrando o braço aqui e ali. Socorrido por curiosos,  as talas improvisadas, ficou com o braço direito torto, a quebradura soldada fora de lugar.

A rotina na fazenda era árdua. Às vinte e uma horas o sino tocava o toque de recolher, exigindo silêncio. Todos deviam ir para a cama para iniciar o afã no dia seguinte. Às cinco em ponto o sino tocava de novo, e reunia os colonos para o trabalho. 

Longas ruas de café para serem carpidas. No frio cortante de julho, arrastavam os panos de "colonial" pelos carreadores. Rastelavam sob as saias das plantas para o repasse e recolhimento dos grãos caídos. Manejavam a peneira na dolorosa estética do abano, atividade exaustiva executada nos meses em que não havia erre. Lombavam as sacas de café para as tulhas. E o fiscal a gritar ordens, a cobrar, a resmungar.

                                                   II

Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
a vida inteira que podia ter sido e que não foi
Tosse, tosse, tosse.


Mandou chamar o médico:
– Diga trinta e três.
– Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
– Respire.
......................................................................
– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
– Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
 


(Libertinagem, Manuel Bandeira)

Mas não foi uma emboscada de um italiano humilhado, ou um punhal traiçoeiro que desapeou o velho Adolpho. Foi um bacilosinho que alojou-se discretamente em seu pulmão e começou um trabalho silencioso e sem pressa.

Meu tio Castor contava que num dia de sol quente seu pai cavalgou o dia inteiro pelo cafezal, depois do almoço às nove e meia da manhã. Suado, com sede, chegou a uma casa humilde no meio da roça. Bateu palmas, solicitou uma caneca d'água. Ela veio fresca no vaso de folha, em mãos de uma italiana solícita. Ele bebeu sofregamente, sem apear do cavalo. Obrigado... E esporeando o cavalo, continuou a cavalgada. 

No fim da tarde, chegou em casa com uma terrível dor de cabeça. Tosse, febre.. Um dor na contraquilha, no fundo das tampas do peito... Começava o seu ordálio. Teria sido a água fresca no corpo quente? Teriam colocado alguma coisa na água? Algum malfeito? Que todos viviam temendo mal-olhados, invejas e feitiços... 

Meu avô estava com tuberculose, simplesmente. Junto com a notícia da doença, também ficou sabendo que minha avó estava grávida. Em 08 de abril de 1907 nascia a pequena Elisa, a tia Lisota do Buracão!

Meu avô ia sentindo cada vez pior. Suas forças iam se exaurindo. Aumentava o peso na cabeça. Não tinha vontade de nada neste mundo. Levantar-se às quatro da manhã, como de costume, tornou-se insuportável. Até que caiu de cama de vez com um febrão danado, e vomitando que só vendo. Náuseas terríveis. Da boca trêmula escorria uma baba amarela. Já não tinha forças para trabalhar.

A tuberculose exigia cuidados além dos recursos de uma família pobre. Os ricos podiam ir para a Suíça, buscando por melhores ares. Os remediados iam para Campos do Jordão. Mas o pobre ia se exaurindo, esperando a morte. Sim, a tuberculose era a morte anunciada...

Minha avó rodeada de seus oito filhos (a Evarista acabara de se casar...) se vê perdida. 

Meu pai é o mais velho, e tem apenas 15 anos. Acompanha desnorteado a agonia do seu pai. Aquele homem rude e forte, que via de dedo em riste, feroz, agora estava jogado numa cama, trêmulo. Ouvia-o tossir, uma tosse convulsa, desesperada, que se repetia, se ampliava e explodia angustiada. Rosto vermelho, olhos lacrimejantes pelo esforço. Reclamava do frio que corria pelas suas pernas, pelo ventre e vinha pelo pescoço até as orelhas.

Meu pobre avô já não tem serventia para o patrão. O serviço de fiscal exigia fibra para impor respeito aos colonos. O coronel precisa de gente nova. Mas o Coronel Soares é piedoso e oferece um canto da fazenda á minha avó, às margens do Rio Pardo, com cinquenta pés de café. Mais tarde, também oferecerá trabalho ao meu pai e ao meu tio Castor, que trabalharão para ele longos anos.

Minha avó consulta o marido doente, os parentes, os amigos. Eles têm de sair da casa onde moram. Não há moradia no canto da fazenda oferecido pelo coronel. Reúnem os vizinhos e amigos num mutirão para construir uma tapera de pau-a-pique. Minha avó mesma ajuda a cravar os esteios no chão, a transportar os bambus, a abrir a clareira no meio do mato. O genro Gabriel lhe dá apoio. Enquanto a tapera não fica pronta, empresta-lhe uma casa. Põe os terecos num carro de boi, que o patrão quer a moradia desocupada logo, para o novo feitor. Meu avô vai febril num colchão de palha, em um carro de bois. O barro da tapera seca, e minha avó se muda.

A casa ficava no meio do mato, ao pé de um morro, num lugar completamente ermo. Antevendo a morte, meu avô começa a instruir a mulher. "Manda roçar aquele trecho. Põe fogo naquele capão. É hora de plantar feijão. Faz um rego d'água perto da cerca." Do catre febril, orienta o Zeca, que nos seus quinze anos, vai assumindo o lugar do pai.

As crianças vão contendo a algazarra, rodeiam o pai com olhos indagadores. De qualquer maneira a casa está sempre cheia de gente, de parentes, de amigos. Nasce a minha tia Lisota, nasce a primeira neta de meu avô, a Bizuca, filha da Evarista.

Meu avô vai definhando. As noites eram sempre piores que os dias. Ele gemia, gemia sem cessar. Sufocado, esgazeava os olhos, tremendo, procurando sentar-se no catre. Gritava por minha avó. Pontadas varavam-lhe o peito. A tosse curta e seca vinha em pequenos intervalos.

Uma noite, estava animado, conversando, parecia até melhor, quando se fez branco, parecia que ia falar. Um jato rubro lhe desceu pela boca inundando a camisa de saco, espirrando sangue até o chão. Minha avó entrava com o mingau de fubá, pôs a cuia em cima da cadeira e correu para ele. A febre queimava. Gemeu a noite toda. Chamava pelos filhos. A testa gotejava de suor.

O fim se aproximava. Veio um sono bom, tranquilo, com há muitos meses não tinha. Depois voltou a respirar estertoradamente. Gemia, seus olhos dançavam. Acalmou-se. Enfim soltou-se relaxado. Estava morto. Com quarenta e dois anos. Era 4 de novembro de 1908. Os farricocos levantaram seu esquife pobre como quem levanta uma palha. O gigante reduzira-se a um feixe de ossos.

O féretro humilde saiu, deixando minha avó com oito filhos e nenhum tostão. Perplexidade. 

Mas dona Mariquinha respondeu ao desafio. Com trinta e oito anos, não tinha medo de serviço. Naquele lar, o serviço mais pesado sempre fora o seu. Foi trabalhar por dia com o Castor e o Zeca, que já eram taludinhos, 14 e 16 anos. Em casa, a Dadá cuidava dos menores, socava o arroz, lavava a roupa, preparava a comida. E vamos aos cinquenta pés de café, à pequena roça. E vamos procurar serviço nos vizinhos. O Coronel Soares, honra lhe seja feita, não perturbou a família e permitiu que ficasse em suas terra pelo tempo que precisassem. E quando meu pai e seus irmãos crescem um pouco, lhes oferece trabalho como fiscais em suas terras.

Apesar do permanente terror de contrair a doença, minha avó sempre dava graças a Deus porque ninguém mais na família se contaminou com a tuberculose. A voz do povo dizia que Deus não permite que a doença do marido contamine sua mulher, ou os seus filhos. Entretanto o Zeca vivia sempre auscultando o peito, com medo da doença.

                                      **********

Observação: As informações sobre a sociedade da época, tirei-as de dois saborosos livros de Nelson Palma Travassos: "Quando eu Era Menino" e "No meu Tempo de Mocinho".












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