sexta-feira, 16 de agosto de 2013

AVOENGOS


BISAVÓS, AVÓS, TIOS-AVÓS...

"E à noite nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
Tornava prudente: 'Meninos, eu vi!'"  G. Dias, "I Juca Pirama"


                           CHICO MARIANO


Nasceu Francisco Antônio da Silva Nogueira, meu bisavô, no distante ano de 1833, em Águas Virtuosas do Lambary (hoje Lambari), Minas Gerais. Naquele tempo, era apenas um pequeno arraial, com três ou quatro dezenas de casas. O nome "Águas Virtuosas" veio da nascente de águas borbulhantes e de sabor especial, cognominada logo de "santa", por suas propriedades curativas, descoberta em 1780. "Lambari" veio dos peixinhos escamosos, "Characidium faciatum", abundantes nos córregos da região. Antônio de Araújo Dantas fundou aí uma extensa fazenda mas só em 1837 foi construída uma capelinha, "uma pequena hermida para se dizer missa ao povo". 

Como meu bisavô foi nascer aí nesse fim de mundo, não sei. Que faziam estes Nogueiras perdidos nas montanhas do sul de Minas? Suspeito que eram descendentes do português Thomé Rodrigues Nogueira do Ó, que aportou em São Vicente por volta de 1708, procedente da Ilha da Madeira. Estabeleceu-se em São Paulo, inicialmente, mas logo migrou para Minas, seduzido pelas descobertas de ouro... Construiu um casarão em Baependi, e aí viveu, acumulando títulos e fortuna, com numerosa descendência. Até hoje Baependi é conhecida como "berço dos Nogueiras".

Meu bisavô era conhecido como Chico Mariano, por razões que desconheço, e transmitiu o apelido aos descendentes. Nasceu em Lambary, aí cresceu e casou-se (circa 1854). Sua mulher, Jesuína Anacleta de Melo, também era natural do lugar. Tiveram muitos filhos. Já devia ter os seus cinquenta anos, quando mudou-se com toda a prole para São José do Rio Pardo. Por quê teria trocado as águas límpidas do Lambari pelas águas turvas do Rio Pardo? O quê teria levado meu bisavô a colocar seus haveres em canastras e bruacas no lombo de lentos cargueiros, e partir com toda a família para um lugar desconhecido? Talvez fosse parente dos Nogueiras que lutaram pela criação desta vila em 20 de março de 1885. De qualquer maneira, a partir de 1860, a fama das terras de São José do Rio Pardo invadiu Minas Gerais, atraindo muita gente para a região.

A mudança rumo a São José do Rio Pardo deve ter durado dias. A velocidade das alimárias não era mais que seis quilômetros por hora. Os caminhos eram precários, e se retorciam pelo dorso dos espigões. Iam da fazenda do coronel tal ao sítio do major fulano de tal. E assim, torcionando, volvendo, avançando, atravessava-se a frente de uma casa de fazenda, cruzava o curral de outra, um nunca acabar de porteiras. As alimárias marchando sonolentas, carregadas. 

São José do Rio Pardo tinha sido elevado a Capela em 26 de março de 1870, cuja bênção se deu em 1873. Foi a Curato em 30 de outubro de 1875 e a Freguesia em 09 de abril de 1880. 

A vila ainda era incipiente quanto o velho Chico ali chegou. Seu filho, meu avô Adolpho, ia fazer compras em Casa Branca, a 30 quilômetros, a cavalo, devido ao comércio limitado da vila. Voltava com os picuás cheios, comprando as mercadorias que não existiam em São José. 

O progresso chegou com a expansão da cultura cafeeira e a consequente imigração italiana. A luz elétrica ainda não tinha chegado (só chega, precária, em 1900), e o povo se servia de primitivas lamparinas de querozene. 

Os imigrantes davam vida à vila nos fins de semana. Os botequins ferviam. Juntava-se a italianada, barulhenta, a cantar, a tocar, a brigar. E tome murros na mesa, e tome palavrão ecoando na cidadezinha tranquila. O povo do lugar, conservador, hostilizava os italianos, e vice-versa:

"Italiano carcamano,
calcanhar de frigideira,
quem foi que te deu ordem
de casar com brasileira?"

A colônia tinha gente culta e politizada, que os fazia sentir-se superiores. Mas o Brasil, recém saído da escravidão, não via o imigrante como algo muito nobre, já que vinha para substituir o negro.

E os italianos hostilizavam os negros, com quem disputavam dignidade e respeito. Mesmo o italiano pobre se sentia "melhor" que os negros, e queria ser tratado como "superior" em relação a eles.

Meu bisavô, que era de origem modesta, suponho, assim mesmo não veio para São José do Rio Pardo trabalhar nas culturas de café. Isto seria tarefa para os imigrantes italianos. A família herdou dele uma pose, um gosto por mandar, que não se coaduna com o trabalho no eito. Seus filhos e netos terão sempre uma indisfarçável arrogância, um "complexo de sinhozinho da casa-grande". Mas não querendo se misturar com a italianada, se sentindo material para coisa melhor, não se deu muito bem. Ali por 1894, muda-se com toda a família para Nova Rezende, para abrir um comércio. Conflitos com os coronéis locais fizeram com que retornasse a São José do Rio Pardo. Foi residir na Rua da Estação (hoje, Avenida Nove de Julho), numa casa simples de esquina, onde hoje fica a Padaria do Casca.

Não sei de que sobrevivia meu bisavô, já que fugia ao serviço bruto, próprio de escravos e imigrantes. Minha tia Lisota, que residia na Rua do Buracão, se lembra dele como um homenzarrão de tez clara, olhos azuis, sempre presente na vida de filhos e netos. Cavacos honestos ao pé do fogo, pitando um cigarrinho de palha, bebericando café forte e doce, plantado, colhido, secado nas terras dos parentes, torrado, socado no pilão, preparado com carinho no coador de pano... Era um homem sem cultura, assim como seus filhos, mas vaidoso, orgulhoso, falador. Era o chefe do clã, sempre consultado para conselhos e decisões. A família seguia seu comando. Já velho, vergou sob o peso dos anos, e andava de ombros arqueados, ligeiramente corcunda, ensimesmado em suas recordações.

Meu pai possuía um cabo de relho caprichosamente torneado a canivete com a inscrição "Lembrança de Lambary", que o velho Chico lhe dera de presente. Por muitos anos em minha mão, extraviou-se em uma das mudanças, para minha tristeza.

O atestado de óbito me informa que Chico Mariano faleceu em 7 de fevereiro de 1921, com 88 anos, de demência senil, ali na Rua da Estação.








Um comentário: