Era uma vez Itobi...
Foi no findar de 1954 que minha família se mudou para Itobi.
Vivíamos num sitiozinho de 13 alqueires, às margens do Rio
Verde, pra lá da Fazenda da Barra. O sítio ficava longe da cidade, as estradas
eram ruins, quase intransitáveis. Plantávamos para comer. Meus irmãos iam se
casando, e fazendo falta na enxada. Meu pai reclamava do mato na plantação, dos
animais passando fome por falta de trato.
Chegou o momento em que trabalhar no sítio não era mais
possível. Eu tinha 5 anos e o Zé tinha 11. Com 5 filhos praticamente casados, meu pai tinha de
contar apenas com a Zelinda, de 19 anos, e a Vera, com 15 anos para plantar,
carpir, colher e cuidar dos animais. Ele não se animava a pegar na enxada, pois
sentia que com isto não sustentava a família. Gostava de negociar animais, comprar,
vender, barganhar. E sentia necessidade de contato com as pessoas, de prosa, de
movimento. Portanto, não via como continuar naquele cafundó, sacrificando as
meninas.
Foi quando o vizinho, Américo Torneira, mostrou-se interessado
em comprar nossas terras e ampliar sua propriedade. A princípio meu pai hesitou.
Acabara de construir uma casa nova, e o Valdemar estava tentando implantar uma
granja no sítio. Mas pensou bem, fez as contas. O Valdemar também estava
desanimado. A vida ali não tinha futuro.
O valor do sítio não era muito, mas poderia emprestar o
dinheiro para pessoas de confiança, e receber uns juros. Os aluguéis em Itobi
não eram caros. Pelos seus cálculos, teria renda para viver folgado até o fim
de seus dias. Afinal, ele era um homem simples. A família estava acostumada com
uma vida espartana, sem luxos. Precisava apenas de um teto, arroz e feijão, parentes
e amigos para prosear... Os filhos iam pegando o seu rumo. E para ele, o tempo
de viver era um luxo. Então concordou em vender a propriedade.
A família inteira se regozijou. A Zelinda e a Vera, que eram
a mão-de-obra pesada, se sentiram livres daquela escravidão, daquele trabalho
duro na terra, plantando, carpindo, colhendo, cuidando das poucas cabeças de
gado, e ouvindo as reclamações do velho.
Lembro-me vagamente do dia da mudança. A Zelinda, diante da
possibilidade de ir para a cidade, acabou de quebrar, propositalmente, alguns
móveis mambembes... O velho guarda-roupa manco, a cama desconjuntada de minha
mãe, a prateleira cambeta da cozinha foram inutilizados sem que meu pai se
desse conta... Assim teria de substituí-los na nova casa.
O caminhão da mudança chegou, e minha mãe não quis ficar para
ver carregar os seus objetos. Ela sentia uma dor no coração de deixar o sítio
onde vivêramos por 13 anos. Passou na casa de-pau-a-pique onde ainda morava meu
irmão Valdemar para falar até logo, que em pouco tempo eles também se mudariam.
Em vez de esperar a saída do caminhão, eu, minha mãe, e a Vera tomamos a
estradinha de terra em direção a Itobi. Já entardecia, e em pouco se fez noite.
Cruzávamos um trecho de mato, quando avistamos ao longe os faróis do caminhão
na escuridão, que vinha vindo com nossos tarecos, roncando. O motorista parou,
subimos, e creio que dormi. Quando acordei, estava na casa nova.
*
Para o garotinho de 5 anos, que sempre vivera no mato, havia
muitas novidades. O que mais me encantou, logo na chegada, foi a luz elétrica.
A luzinha fraca, amarelada, mal iluminando o ambiente, me causou espanto. Havia
só uma lâmpada na sala, mas minha mãe não havia se esquecido de trazer as
lamparinas de querosene... Eu estava exausto, e ignoro como a mudança foi descarregada.
Um colchão de palha foi estendido sobre as tábuas da cama, e desmaiei,
indiferente ao lugar em que estava.
Era uma casa amarela, de pé direito alto, portas largas,
janelas imensas, com cômodos espaçosos, a última casa da Rua 15 de Novembro,
encostada na chácara dos Contis. Meu cunhado Pedro depois me contou que ele
morara ali no tempo em que frequentava o grupo escolar, com sua madrinha, que
tinha construído a casa. Na porta da cozinha havia um forno, e dentro do forno
encontramos um cacho de bananas madurinhas que os antigos moradores, o
Sebastião Seleiro e Dona Maria haviam deixado para nós, gentilmente. Aliás, o
quintal era enorme, com muitas bananeiras, jabuticabeiras e goiabeiras. No
fundo do quintal uma comodidade: uma “casinha”, a fossa negra, protegida, onde
a gente se acocorava para satisfazer as necessidades, mantendo um equilíbrio
precário, contemplando os vermes que se remexiam no meio da merda lá embaixo...
Um avanço em relação à vida no sítio, onde procurávamos as moitas, procurando uma
certa privacidade, e importunados pelas galinhas. A uma distância razoável,
junto da casa, ficava a cisterna, de onde se tirava a água com carretilha,
corda e balde.
Minha irmã Vera conta
que logo no primeiro dia subi na mureta da cisterna para tentar apanhar os
frutos da goiabeira que lançava seus frutos sobre a boca hiante, sem proteção.
Minha mãe gelou ao me ver naquela situação perigosa, mas percebeu que não podia
me assustar... que eu poderia perder o equilíbrio e cair no poço... Acidente
não incomum naqueles tempos... Aproximou-se “tranquilamente” e me agarrou antes
que fosse tarde... E na boa pedagogia da época, foi logo me aplicando umas
chineladas para aprender a ter cuidado.
Ah... o quintal era cheio de jabuticabeiras, de goiabeiras,
de bananeiras. Moleque esganado, quando vi a fruteira carregada, avancei nas
jabuticabas maduras com fé e coragem, engolindo casca e caroço,
indiscriminadamente, saboreando a polpa gostosa e suculenta. De quebra, ataquei
goiabas ainda verdes do pé ao lado. Não deu outra. Quando chegou a hora de ir
ao banheiro, comecei a sentir cólicas, sem conseguir colocar pra fora tudo o
que comera. Estava “encalhado”. Minha mãe, ao ver minha agonia, começou a
preparar um clister. Entretanto, antes da intervenção, espeli literalmente um
“tijolo” de caroços e fibras... Um verdadeiro “parto”, e imenso alívio. Pois
é... Acidente do qual as crianças de hoje estão livres, tomando “suquinhos” e
saladas de fruta... Mas nunca saberão o gosto de se empanturrar nos galhos de
uma jabuticabeira, tentando pegar aquela mais docinha, no último ramo, se
equilibrando perigosamente no galho flexível...
Outra memória é de minha mãe estar torrando café... Sim, hoje
ninguém sabe o que é torrar café. Colocavam-se os grãos do café na panela de
ferro e punha para torrar na trempe do fogão, até deixar os grãos pretinhos,
crocantes... para depois então moer o café no munho e chegar ao pó perfumado,
pronto para coar. Eu me aproximei da panela escaldante no fogão, e queimei o
braço. Comecei a gritar de dor, e meu pai perdeu paciência e me meteu a cinta. Eu
devia estar insuportável neste dia para ele chegar a tanto,mas lembro-me de ter
ficado profundamente ressentido, sentindo-me injustiçado. Para me consolar,
minha mãe me fez doce de leite, e eu fiquei manhoso, choramingando no rabo do
fogão.
Apesar de ter cinco anos, eu dormia na cama de meus pais.
Lembro-me de uma noite em que meu pai teve câimbras e começou a gemer alto,
enquanto minha mãe improvisava o “barbante” para amarrar na perna e cortar a
câimbra – uma simpatia. Assustado com os gemidos, fugi para o quarto das minhas
irmãs, que era ligado por uma porta interna, e me aconcheguei entre elas. Senti
um cheiro forte de mênstruo... o calor das cobertas... e fiquei enojado.
A minha irmã Lisota veio de São Paulo nos visitar, e trouxe a
Sônia, e a Zefa, que tinha apenas dois anos. Eu brincava com elas de casinha,
com cacos de louça sobre tijolos simulando uma prateleira. Usávamos os panos de
bater arroz que trouxéramos do sítio para fazer cercados. Ou rabiscávamos o
chão da sala com giz, imaginando os prédios de São Paulo.
O vizinho da frente tinha um garoto, um negrinho, como meu
pai o chamava, que me causava um certo medo, talvez por ser um tanto belicoso. Aliás,
eu já despontava como um menino covarde, com medo de apanhar dos companheiros. Meu
pai tomou minhas dores. Pois é, falei “negrinho” que é exatamente como o
chamávamos de maneira depreciativa. Éramos todos racistas, não havia o
“politicamente correto”. Naquele Itobi a que cheguei, os pretos eram raça
inferior... tratados com paternalismo, mas num lugar sotoposto. E ninguém
questionava isto. Minhas irmãs nem pensavam em flertar um negro, pois seria
algo indigno. E meu pai não escondia o sentimento de superioridade por ser
branco.
Na esquina morava o seu Inocêncio, negro velho, de carapinha
branca, silencioso, deslizando como uma sombra nos seus prováveis noventa anos.
No primeiro ano da escola, a professora explicou que ele era um sobrevivente da
escravidão, e que fora liberto pela princesa Isabel. E ficava muito claro que
não era como nós. Objeto de curiosidade, vivendo num mundo a parte.
Na rua de cima morava minha prima Nelsa, com um belo pé de
jaca no quintal.
Meu irmão Valdemar não demorou a sair do sítio. Comprou uma
casa atrás da igreja matriz de Nossa Senhora das Dores. Minha cunhada Maura
chegou grávida, e nasceu meu sobrinho Camilo em janeiro de 1955.
Quando chegamos a Itobi, aí também morava minha irmã
Mariinha, fazia pouco tempo. Meu cunhado Pedro Madureira tinha comprado o
açougue do Narcizinho, e tentava levar o negócio adiante. Entretanto, as
condições primitivas do matadouro, a crueldade da profissão o fizeram logo
procurar outro negócio. Comprou um bar em Casa Branca e mudou-se.
Mas minha irmã em Itobi me traz uma lembrança marcante. Pela
primeira vez, em sua casa, que ficava em frente à casa do seu Atílio Morini, da
companhia de força e luz, comi abacaxi. Puro encantamento diante do novo sabor
agridoce! Mas foi só o começo das minhas conquistas quanto a sabores. Outro
momento inesquecível foi experimentar pela primeira vez um sorvete de palito,
sabor groselha, no bar do Barquinha (Voltarelli). O picolé, vistoso no seu
vermelho vivo, foi meu primeiro contato com o gelo, fascinante, derretendo na
boca. E como me esquecer dos bagos visguentos da jaca que experimentei na casa
da prima Nelsa? Ou da uvaia azedinha que saboreei na chácara dos Contis?
No começo do ano de 1955, e eu e o meu sobrinho João Batista fomos
matriculados no Jardim da Infância – era assim que se chamava – e minha irmã
fez uma sacolinha para cada um de nós levarmos o lanche. Mas não me lembro deste
Jardim da Infância, creio que frequentei apenas uma semana. Minha irmã mudou-se
para Casa Branca, e eu simplesmente abandonei a escola, com a conivência de
meus pais que não davam nenhum valor a ela.
Ainda morávamos nesta casa em 14.05.1955 quando minha irmã
Teresa se casou. Lembro-me apenas que chorei muito, saí da igreja em prantos.
Que fantasias a cerimônia me despertou?
Intercalo uma passagem que me contaram depois. Minha irmã
Teresa estava na porta da Igreja com seu futuro marido Marcelo e os pais dele,
esperando pelo padre para marcar a data do casamento. Meu pai vinha vindo,
olhou, e foi perguntar à Teresa o que ela estava fazendo alí. Ela explicou.
Ele, duro, malcriado, ordenou: “Vai já pra casa. Quando o padre chegar, eles
vão lá te chamar...” Virou as costas e foi embora. Ela obedeceu. Seu Zequinha temia que as filhas caíssem na
boca do povo... Coisa muito fácil naqueles tempos um tanto hipócritas...
Ah... Tempos de repressão... Teresa se casou e foi passar sua lua de mel em São Paulo, ficando alguns dias na casa de minha irmã Lisota. A vizinha ficou escandalizada ao ver Teresa beijando o marido no portão, achando aquilo uma pouca vergonha, e mal exemplo para as crianças. Um casal em lua de mel mostrando carinho ou afeto um pelo outro, era uma obscenidade...
Ah... Tempos de repressão... Teresa se casou e foi passar sua lua de mel em São Paulo, ficando alguns dias na casa de minha irmã Lisota. A vizinha ficou escandalizada ao ver Teresa beijando o marido no portão, achando aquilo uma pouca vergonha, e mal exemplo para as crianças. Um casal em lua de mel mostrando carinho ou afeto um pelo outro, era uma obscenidade...
*
Itobi tinha apenas 5 ruas, e uma dúzia de travessas... A rua
principal, que chamávamos “Rua do Meio”, começava na minha casa, junto à
chácara dos Conti e ia até um quarteirão depois da Casa Trogiani.
Itobi possuía longas ruas descalças, areientas, sem a sombra
de uma árvore. Calçadas carcomidas. Entretanto, as casas tinham amplos
quintais, com suas mangueiras, abacateiros, limoeiros, laranjeiras,
jabuticabeiras, cajueiros, pés de jambo, uvaia, bananeiras... Além de galinhas,
porcos, cabritos, cavalos...
Logo um quarteirão adiante, em frente à Igreja Matriz
dedicada a Nossa Senhora das Dores, havia um alto-falante, que chamávamos de
PR, sei lá porquê. Toda noitinha, às 7 horas, ouvíamos música, avisos de
utilidade pública, anúncios de morte ao som da Ave Maria de Gounot.
Creio que não ficamos um ano nesta casa da rua Quinze de
Novembro. Em pouco tempo mudamo-nos para a rua de baixo, a Rua da Estação, a
Rua Antônio Martins Daniel, cujo nome só descobri agora, sessenta anos depois...
*
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