terça-feira, 5 de novembro de 2013

Era uma vez Itobi...

Era uma vez Itobi...

Foi no findar de 1954 que minha família se mudou para Itobi.

Vivíamos num sitiozinho de 13 alqueires, às margens do Rio Verde, pra lá da Fazenda da Barra. O sítio ficava longe da cidade, as estradas eram ruins, quase intransitáveis. Plantávamos para comer. Meus irmãos iam se casando, e fazendo falta na enxada. Meu pai reclamava do mato na plantação, dos animais passando fome por falta de trato.

Chegou o momento em que trabalhar no sítio não era mais possível. Eu tinha 5 anos e o Zé tinha 11. Com 5  filhos praticamente casados, meu pai tinha de contar apenas com a Zelinda, de 19 anos, e a Vera, com 15 anos para plantar, carpir, colher e cuidar dos animais. Ele não se animava a pegar na enxada, pois sentia que com isto não sustentava a família. Gostava de negociar animais, comprar, vender, barganhar. E sentia necessidade de contato com as pessoas, de prosa, de movimento. Portanto, não via como continuar naquele cafundó, sacrificando as meninas.

Foi quando o vizinho, Américo Torneira, mostrou-se interessado em comprar nossas terras e ampliar sua propriedade. A princípio meu pai hesitou. Acabara de construir uma casa nova, e o Valdemar estava tentando implantar uma granja no sítio. Mas pensou bem, fez as contas. O Valdemar também estava desanimado. A vida ali não tinha futuro.

O valor do sítio não era muito, mas poderia emprestar o dinheiro para pessoas de confiança, e receber uns juros. Os aluguéis em Itobi não eram caros. Pelos seus cálculos, teria renda para viver folgado até o fim de seus dias. Afinal, ele era um homem simples. A família estava acostumada com uma vida espartana, sem luxos. Precisava apenas de um teto, arroz e feijão, parentes e amigos para prosear... Os filhos iam pegando o seu rumo. E para ele, o tempo de viver era um luxo. Então concordou em vender a propriedade.

A família inteira se regozijou. A Zelinda e a Vera, que eram a mão-de-obra pesada, se sentiram livres daquela escravidão, daquele trabalho duro na terra, plantando, carpindo, colhendo, cuidando das poucas cabeças de gado, e ouvindo as reclamações do velho.

Lembro-me vagamente do dia da mudança. A Zelinda, diante da possibilidade de ir para a cidade, acabou de quebrar, propositalmente, alguns móveis mambembes... O velho guarda-roupa manco, a cama desconjuntada de minha mãe, a prateleira cambeta da cozinha foram inutilizados sem que meu pai se desse conta... Assim teria de substituí-los na nova casa.

O caminhão da mudança chegou, e minha mãe não quis ficar para ver carregar os seus objetos. Ela sentia uma dor no coração de deixar o sítio onde vivêramos por 13 anos. Passou na casa de-pau-a-pique onde ainda morava meu irmão Valdemar para falar até logo, que em pouco tempo eles também se mudariam. Em vez de esperar a saída do caminhão, eu, minha mãe, e a Vera tomamos a estradinha de terra em direção a Itobi. Já entardecia, e em pouco se fez noite. Cruzávamos um trecho de mato, quando avistamos ao longe os faróis do caminhão na escuridão, que vinha vindo com nossos tarecos, roncando. O motorista parou, subimos, e creio que dormi. Quando acordei, estava na casa nova.

*

Para o garotinho de 5 anos, que sempre vivera no mato, havia muitas novidades. O que mais me encantou, logo na chegada, foi a luz elétrica. A luzinha fraca, amarelada, mal iluminando o ambiente, me causou espanto. Havia só uma lâmpada na sala, mas minha mãe não havia se esquecido de trazer as lamparinas de querosene... Eu estava exausto, e ignoro como a mudança foi descarregada. Um colchão de palha foi estendido sobre as tábuas da cama, e desmaiei, indiferente ao lugar em que estava.

Era uma casa amarela, de pé direito alto, portas largas, janelas imensas, com cômodos espaçosos, a última casa da Rua 15 de Novembro, encostada na chácara dos Contis. Meu cunhado Pedro depois me contou que ele morara ali no tempo em que frequentava o grupo escolar, com sua madrinha, que tinha construído a casa. Na porta da cozinha havia um forno, e dentro do forno encontramos um cacho de bananas madurinhas que os antigos moradores, o Sebastião Seleiro e Dona Maria haviam deixado para nós, gentilmente. Aliás, o quintal era enorme, com muitas bananeiras, jabuticabeiras e goiabeiras. No fundo do quintal uma comodidade: uma “casinha”, a fossa negra, protegida, onde a gente se acocorava para satisfazer as necessidades, mantendo um equilíbrio precário, contemplando os vermes que se remexiam no meio da merda lá embaixo... Um avanço em relação à vida no sítio, onde procurávamos as moitas, procurando uma certa privacidade, e importunados pelas galinhas. A uma distância razoável, junto da casa, ficava a cisterna, de onde se tirava a água com carretilha, corda e balde.

 Minha irmã Vera conta que logo no primeiro dia subi na mureta da cisterna para tentar apanhar os frutos da goiabeira que lançava seus frutos sobre a boca hiante, sem proteção. Minha mãe gelou ao me ver naquela situação perigosa, mas percebeu que não podia me assustar... que eu poderia perder o equilíbrio e cair no poço... Acidente não incomum naqueles tempos... Aproximou-se “tranquilamente” e me agarrou antes que fosse tarde... E na boa pedagogia da época, foi logo me aplicando umas chineladas para aprender a ter cuidado.

Ah... o quintal era cheio de jabuticabeiras, de goiabeiras, de bananeiras. Moleque esganado, quando vi a fruteira carregada, avancei nas jabuticabas maduras com fé e coragem, engolindo casca e caroço, indiscriminadamente, saboreando a polpa gostosa e suculenta. De quebra, ataquei goiabas ainda verdes do pé ao lado. Não deu outra. Quando chegou a hora de ir ao banheiro, comecei a sentir cólicas, sem conseguir colocar pra fora tudo o que comera. Estava “encalhado”. Minha mãe, ao ver minha agonia, começou a preparar um clister. Entretanto, antes da intervenção, espeli literalmente um “tijolo” de caroços e fibras... Um verdadeiro “parto”, e imenso alívio. Pois é... Acidente do qual as crianças de hoje estão livres, tomando “suquinhos” e saladas de fruta... Mas nunca saberão o gosto de se empanturrar nos galhos de uma jabuticabeira, tentando pegar aquela mais docinha, no último ramo, se equilibrando perigosamente no galho flexível...

Outra memória é de minha mãe estar torrando café... Sim, hoje ninguém sabe o que é torrar café. Colocavam-se os grãos do café na panela de ferro e punha para torrar na trempe do fogão, até deixar os grãos pretinhos, crocantes... para depois então moer o café no munho e chegar ao pó perfumado, pronto para coar. Eu me aproximei da panela escaldante no fogão, e queimei o braço. Comecei a gritar de dor, e meu pai perdeu paciência e me meteu a cinta. Eu devia estar insuportável neste dia para ele chegar a tanto,mas lembro-me de ter ficado profundamente ressentido, sentindo-me injustiçado. Para me consolar, minha mãe me fez doce de leite, e eu fiquei manhoso, choramingando no rabo do fogão.

Apesar de ter cinco anos, eu dormia na cama de meus pais. Lembro-me de uma noite em que meu pai teve câimbras e começou a gemer alto, enquanto minha mãe improvisava o “barbante” para amarrar na perna e cortar a câimbra – uma simpatia. Assustado com os gemidos, fugi para o quarto das minhas irmãs, que era ligado por uma porta interna, e me aconcheguei entre elas. Senti um cheiro forte de mênstruo... o calor das cobertas... e fiquei enojado.

A minha irmã Lisota veio de São Paulo nos visitar, e trouxe a Sônia, e a Zefa, que tinha apenas dois anos. Eu brincava com elas de casinha, com cacos de louça sobre tijolos simulando uma prateleira. Usávamos os panos de bater arroz que trouxéramos do sítio para fazer cercados. Ou rabiscávamos o chão da sala com giz, imaginando os prédios de São Paulo.

O vizinho da frente tinha um garoto, um negrinho, como meu pai o chamava, que me causava um certo medo, talvez por ser um tanto belicoso. Aliás, eu já despontava como um menino covarde, com medo de apanhar dos companheiros. Meu pai tomou minhas dores. Pois é, falei “negrinho” que é exatamente como o chamávamos de maneira depreciativa. Éramos todos racistas, não havia o “politicamente correto”. Naquele Itobi a que cheguei, os pretos eram raça inferior... tratados com paternalismo, mas num lugar sotoposto. E ninguém questionava isto. Minhas irmãs nem pensavam em flertar um negro, pois seria algo indigno. E meu pai não escondia o sentimento de superioridade por ser branco.

Na esquina morava o seu Inocêncio, negro velho, de carapinha branca, silencioso, deslizando como uma sombra nos seus prováveis noventa anos. No primeiro ano da escola, a professora explicou que ele era um sobrevivente da escravidão, e que fora liberto pela princesa Isabel. E ficava muito claro que não era como nós. Objeto de curiosidade, vivendo num mundo a parte.

Na rua de cima morava minha prima Nelsa, com um belo pé de jaca no quintal.

Meu irmão Valdemar não demorou a sair do sítio. Comprou uma casa atrás da igreja matriz de Nossa Senhora das Dores. Minha cunhada Maura chegou grávida, e nasceu meu sobrinho Camilo em janeiro de 1955.

Quando chegamos a Itobi, aí também morava minha irmã Mariinha, fazia pouco tempo. Meu cunhado Pedro Madureira tinha comprado o açougue do Narcizinho, e tentava levar o negócio adiante. Entretanto, as condições primitivas do matadouro, a crueldade da profissão o fizeram logo procurar outro negócio. Comprou um bar em Casa Branca e mudou-se.

Mas minha irmã em Itobi me traz uma lembrança marcante. Pela primeira vez, em sua casa, que ficava em frente à casa do seu Atílio Morini, da companhia de força e luz, comi abacaxi. Puro encantamento diante do novo sabor agridoce! Mas foi só o começo das minhas conquistas quanto a sabores. Outro momento inesquecível foi experimentar pela primeira vez um sorvete de palito, sabor groselha, no bar do Barquinha (Voltarelli). O picolé, vistoso no seu vermelho vivo, foi meu primeiro contato com o gelo, fascinante, derretendo na boca. E como me esquecer dos bagos visguentos da jaca que experimentei na casa da prima Nelsa? Ou da uvaia azedinha que saboreei na chácara dos Contis?

No começo do ano de 1955, e eu e o meu sobrinho João Batista fomos matriculados no Jardim da Infância – era assim que se chamava – e minha irmã fez uma sacolinha para cada um de nós levarmos o lanche. Mas não me lembro deste Jardim da Infância, creio que frequentei apenas uma semana. Minha irmã mudou-se para Casa Branca, e eu simplesmente abandonei a escola, com a conivência de meus pais que não davam nenhum valor a ela.

Ainda morávamos nesta casa em 14.05.1955 quando minha irmã Teresa se casou. Lembro-me apenas que chorei muito, saí da igreja em prantos. Que fantasias a cerimônia me despertou?

Intercalo uma passagem que me contaram depois. Minha irmã Teresa estava na porta da Igreja com seu futuro marido Marcelo e os pais dele, esperando pelo padre para marcar a data do casamento. Meu pai vinha vindo, olhou, e foi perguntar à Teresa o que ela estava fazendo alí. Ela explicou. Ele, duro, malcriado, ordenou: “Vai já pra casa. Quando o padre chegar, eles vão lá te chamar...” Virou as costas e foi embora. Ela obedeceu.  Seu Zequinha temia que as filhas caíssem na boca do povo... Coisa muito fácil naqueles tempos um tanto hipócritas...

Ah... Tempos de repressão... Teresa se casou e foi passar sua lua de mel em São Paulo, ficando alguns dias na casa de minha irmã Lisota. A vizinha ficou escandalizada ao ver Teresa beijando o marido no portão, achando aquilo uma pouca vergonha, e mal exemplo para as crianças. Um casal em lua de mel mostrando carinho ou afeto um pelo outro, era uma obscenidade...

*

Itobi tinha apenas 5 ruas, e uma dúzia de travessas... A rua principal, que chamávamos “Rua do Meio”, começava na minha casa, junto à chácara dos Conti e ia até um quarteirão depois da Casa Trogiani.

Itobi possuía longas ruas descalças, areientas, sem a sombra de uma árvore. Calçadas carcomidas. Entretanto, as casas tinham amplos quintais, com suas mangueiras, abacateiros, limoeiros, laranjeiras, jabuticabeiras, cajueiros, pés de jambo, uvaia, bananeiras... Além de galinhas, porcos, cabritos, cavalos...

Logo um quarteirão adiante, em frente à Igreja Matriz dedicada a Nossa Senhora das Dores, havia um alto-falante, que chamávamos de PR, sei lá porquê. Toda noitinha, às 7 horas, ouvíamos música, avisos de utilidade pública, anúncios de morte ao som da Ave Maria de Gounot.

Creio que não ficamos um ano nesta casa da rua Quinze de Novembro. Em pouco tempo mudamo-nos para a rua de baixo, a Rua da Estação, a Rua Antônio Martins Daniel, cujo nome só descobri agora, sessenta anos depois...
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