segunda-feira, 29 de julho de 2013

ANTES QUE SE PROCLAME A REPÚBLICA





Antes que se proclame a República...


Chegava o fim do século XIX.

Meu bisavô José Hipólito não gostou absolutamente da abolição da escravatura. Não que ele fosse um grande proprietário de escravos, muito pelo contrário. Mas este bisavô era um cabra macho, que gostava de fazer justiça à sua maneira, e desconfiava das mudanças. Nascera, crescera, casara e tivera seus filhos sob o reinado de D.Pedro II. O imperador parecia eterno, e sua figura distante tinha um quê de sagrada.

A abolição da escravatura era uma quebra dos valores daquele mundo sólido em que sempre vivera. Seu pai tivera escravos, assim como seu avô, seu bisavô, mas os negros criavam problemas, eram topetudos.

No no seu mundo, o pai tinha ascendência sobre o filho, o marido sobre a mulher, o professor sobre o aluno, a família sobre o indivíduo, o passado sobre o futuro, e a continuidade sobre a mudança.

Ouvira falar do que acontecera em Lambari, na Fazenda do Sertãozinho. O preto Pedrinho ficara aborrecido quando seu irmão José foi vendido a um fazendeiro a quem não queria servir. Pedrinho ficou magoado com a atitude de seu senhor, mas manteve a raiva sufocada. Entretanto, quando vendeu seu cavalo ao irmão, Francisco Gomes o repreendeu duramente pela venda e anunciara que iria buscar o cavalo. Caso este não fosse devolvido, entregaria o caso à polícia. O negro Pedrinho, sentiu o ódio transbordar e armou uma emboscada para seu senhor. Na estrada para Campanha, derrubou-o de seu cavalo e o esfaqueou. Em seguida, ainda foi dormir em casa de sua amásia Candinha.  A amásia perguntara-lhe sobre as manchas de sangue na camisa e ele respondera evasivamente. Sem muito medo de ser descoberto entregara a camisa a sua irmã Marciana para lavá-la. A mãe de Francisco vira a camisa ser lavada e percebera imediatamente quem era o assassino de seu filho. Não havia dúvidas quanto ao crime.

Estas e outras histórias mantinham os proprietários de escravos em guarda, e havia um certo medo em relação a eles. O velho José Hipólito mantinha as portas de seu quarto bem trancadas à noite, pois não era muito bem visto pelos seus cativos. Homem de pavio curto, não era de muitos agrados com os negros da senzala. E achava um atrevimento da negraiada a recusa em obedecer, e a má vontade com que iam para o eito.

 Então veio a princesa Izabel e acabou com a escravidão. E agora o próprio Império corria riscos. Era o fim do mundo.

Seus escravos foram embora cuidar da vida, mas duas negras velhas relutaram em abandonar a casa. A velha Dadá, com mais de 70 anos, não tinha família, e nem para onde ir. Ela criara as crianças, e se afeiçoara a elas. E ele herdara a velha escrava de seu próprio pai.

Era nisto que pensava naquela manhã ensolarada, enquanto enrolava um cigarro de palha, a caminho da cidade, montado na besta ruana. Precisava ferrar o animal, comprar querosene para as lamparinas, trocar uma quarta de fubá. Ao passar pela porteira de arame, um bando de periquitos voou da macauveira, e isto o fez lembrar da gaiola que o filho mais novo encomendara. O menino só pensava em andar atrás dos passarinhos, alçapão e visgo preparados, pegando canários e periquitos.

Logo cruzou a entrada da vila. Avistou o Chico Mariano na porta da venda, e parou para um dedo de prosa. Conversa vai, conversa vem, apeou, entrou na venda, apoiou-se no balcão carcomido, pediu um copo de cachaça. O vendeiro português apressou-se a servi-lo. O Chico falou que em São José do Rio Pardo já se falava abertamente na República. Mostrou-lhe um pedaço de jornal com um texto provocador, que falava exatamente das mudanças que estavam acontecendo.

“Fui ver pretos na cidade
Que quisessem se alugar.
Falei com humildade:
- Negros, querem trabalhar?
Olharam-me de soslaio,
E um deles, feio, cambaio,
Respondeu-me arfando o peito:
- Negro não há mais, não:
Nós tudo hoje é cidadão,
O branco que vá pro eito.”

- Olha a que ponto chegamos! O mundo está mesmo perdido. Já falam em tirar o imperador e proclamar a República!

Falava baixo, meio em segredo, pra ninguém ouvir.

- Esta tal República é coisa de satanás. Dizem que os pais não vão mais mandar nos filhos, que as filhas poderão se casar com quem quiserem... E que a igreja não vai fazer mais casamentos, mas sim, o cartório!

- Ah, isso não Chico, em meus filhos quem manda sou eu!

Mas os boatos ficavam martelando na cabeça do velho Hipólito. Precisava casar suas filhas antes que fosse tarde. Imaginem só, se elas têm licença pra casar com quem quiserem, nesta tal de República... Vão se embeiçar por qualquer malandro, e eu não vou poder impedir?

Naquela noite, puxou assunto com a Maria do Carmo. Falou dos boatos, da tal República que tirava a autoridade dos pais. O mundo estava de cabeça para baixo, até os negros estavam livres!Imagine o que vinha por aí... Só faltava não mandar mais nos filhos!

Maria do Carmo concordou. Os filhos homens não causavam tanta preocupação, mas as filhas mulheres... A Maria José e a Olímpia já estavam na hora de casar. O problema é que ela não via muitos pretendentes à altura delas. Tinham sido educadas com especial cuidado. Sabiam bordar, costurar, cozinhar, e até mesmo  ler e escrever!

Eram sete filhos: Maria José, Olímpia, José, Antônio, Sebastião, Castorino, Olímpio e um na barriga, a caminho. Castorino e Olímpio já eram casados, as noras eram sacudidas e trabalhadeiras. Mas agora urgia encaminhar as meninas.

Começou a sondar os moços na missa de domingo, a pensar num partido para a Maria José. Foi então que viu o filho do Chico Mariano, o Adolpho, um rapaz bem apanhado e trabalhador. Está certo que era um tanto arrogante e falador, mas era ambicioso...

O velho Hipólito procurou o Chico Mariano e propôs o casamento. Adolpho, que já deitava a asa pela Maria José e precisava de uma companheira gostou da ideia. A garota, já chegando aos vinte anos temia ficar pra tia. Fez um pouco de charme, mas aceitou. Em pouco tempo o casamento foi arranjado. O padre lavrou os papéis e sacramentou o ato.  Houve festa, baile com sanfoneiro e tudo. Era setembro de 1889. Em outubro a Olímpia se casou com o Sebastião, agricultor simplório mas esforçado. O Império perigava, mas meu avô se precavia. As filhas dele se casariam com rapazes que ele escolhera, oras!

Quando Marechal Deodoro proclamou a República, em novembro de 1889, Maria José e Olímpia já estavam casadas. Meu bisavô respirou aliviado.


Nota: Meu avô José Hipólito Gonçalves (também José Hipólito da Silva) casou-se com Maria do Carmo Ribeiro, e tiveram muitos filhos: Maria José Ribeiro (a vó Mariquinha, minha avó), Olímpia (que se casou com Sebastião, e foram os padrinhos de meu pai), Antônio, Sebastião, Castorino, Olímpio, Maria. Ficou viúvo, e minha bisavó Maria do Carmo Ribeiro foi sepultada ali no cemitério antigo de São José do Rio Pardo, depois "Jardim do Artese", e atualmente Praça dos Três Poderes. A vó Mariquinha mostrava onde tinha sido o túmulo de sua mãe, no cemitério em frente à sua casa, na Rua Treze de Maio (onde hoje é o supermercado). Meu avô teve um segundo conúbio, com América, e teve pelo menos um filho, José, do qual tenho uma foto esmaecida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário